Coisas
da saudade
Acordei
com o fedor do banheiro dominando a minha mente. O tempo estava
chuvoso... um café na padaria, o calor se fez presente. Pé na
estrada, ainda com os pneus de trilha.
O
GPS e o celular, desligados. Capa de chuva, só a parte de cima. As
gotas batiam no capacete, como um mantra.
Talvez
fosse essa a ideia. Se perder, desconectar, desligar. Meditar sobre o
asfalto com o mantra da chuva. Me encontrar quando me perder. Acho
que é o sentido de uma viagem, afinal. Turistar já é outra coisa.
Lá
pela metade do dia parei em um posto qualquer pra trocar os pneus
pelos de rua e segui, com destino a Chapada das Mesas no Maranhão e
a charmosa cidade de Carolina.
Numa
parada qualquer, enquanto tomo uma coca gelada e um salgado, forma-se
uma roda em volta da moto. Um senhor, do alto dos seus sessenta e
tantos anos, veio animado me contar da realização do seu sonho:
estava tirando a carteira de moto, apesar dos protestos da família.
Resmunguei
baixinho: “Perigoso é passar a vida com medo de realizar seus
sonhos”.
Atravessar
para o Maranhão é uma epopéia a parte, a balsa no tocantins é uma
bagunça só, e na fila conheci dois conterrâneos paulistas em um
jipe frankenstein. Ainda chovia. Saindo da balsa paro na primeira
pousada, logo à direita, um casarão a R$35 a diária. Cansado e
molhado, descarrego a moto, e ao entrar no banheiro para tomar um
banho quente relaxar, quem disse que tinha chuveiro?
Aqui
é o ponto chave da viagem. Devo decidir: Meia volta, mais uma
passada no jalapão, chapada dos veadeiros e casa, ou pegar sentido
sol nascente, para Recife, visitar a família em Pernambuco e de lá
voltar pra casa?
A
chuva não me larga. Dane-se a chapada: vou rodar pra matar saudades!
Aponto a moto ao leste e acelero.
Uma
passadinha numa das principais cachoeiras da região (as quedas do
“Itaborany”), mas o ambiente não era animador. Um cheiro
horrível de urina e muito lixo nos arredores.
Saí
dali, perdi a entrada pra atração principal da chapada e segui.
Quando decidi colocar a capa, já estava completamente ensopado.
Numa
parada pra lanche encontrei as primeiras motos viajantes de toda
viagem “Os Caburés do Cerrado”. Povo gente boa!
Equivalente
a fronteira do arroz com o feijão, a fronteira entre Maranhão e
Piauí era a divisão de dois mundos completamente diferentes.
O
Maranhão, verde e chuvoso, e Piauí, ensolarado e seco (e ressecado,
diga-se de passagem).
Cheguei
à cidade de Campina Grande, quase na divisa Piauí/Pernambuco,
depois de alguns quilômetros assustadores rodados depois do
pôr-do-sol, avistei uma pousada de cantinho, e ótima surpresa, era
a primeira noite de funcionamento e eu era o primeiro hóspede!
Quaarto excelente e barato: Ar-condicionado, garagem, cama box,
televisão LED... e nada de chuveiro.
Banho
gelado e cama.
Sem
novidade, asfalto e estrada. Saí as cinco da manhã ,as sete parei
já em Pernambuco e comi a melhor esfirra de frango da minha vida, e
as três da tarde depois de novecentos quilômetros cheguei a costa
de Recife. Entrei na casa dos meus pais e a chuva chegou no mesmo
momento.
Fiquei
por lá três curtíssimos dias.
Com
olhos marejados, parto de Recife, agora apontando ao sul. Uma chata
nuvem escura me perseguia, cheguei a colocar a capa, sem necessidade.
Aqui
sem novidades, BR sempre, caminhões e mais caminhões. Eu queria
parar em alguns lugares curtir, mas a saudade apertou e resolvi
tocar. Alguns momentos e passei as divisas Pernambuco/Alagoas,
Alagoas/Sergipe e depois Sergipe/Bahia.
Nunca
havia pego a BR 101 na Bahia e o transito é assustador. Muitos, mas
muitos caminhões, praticamente uma linha contínua. A moto carregada
sofria pra ultrapassar.
Quando
cheguei a Santo Antônio de Jesus, parei em um hotelzinho de beira de
estrada qualquer e fiquei por lá.
Saio
cedo de Sto Antonio de Jesus, e o sul da Bahia parece não ter fim. A
pista simples, cheia de vendedores e lombadas, não deixava a viagem
render. Pensei em fazer esse trecho pelo litoral, mas não sabia se
era possível sem muitas balsas pelo caminho. Fica pra próxima.
Fiquei
decepcionado com a chegada ao Espírito Santo. Placas iam indicando
apenas um pedágio, nada de divisa. E o pedágio era a divisa, e nada
de placa! E nada de pista duplicada. Pedágio sem pista duplicada é
PIADA! E não ter uma placa de divisa de estado no mínimo é falta
de respeito.
Da
Bahia para o Espírito Santo, em termos de limpeza e orqanização, é
muito visível a diferença. A Bahia é uma bagunça, mesmo comparada
aos outros estados do nordeste. O Espírito Santo é bem organizado e
lindo. Sinceramente não me lembrava de ser bonito assim na minha
infância.
Essa
impressão durou até procurar um hotel. Parei num grande posto que
tinha um hotel pros caminhoneiros, mas estava lotado. Pouco adianta
havia outro. Sem ninguém. No melhor estilo filme de terror.
O
recepcionista me atendeu. Era cedo ainda, mas no outro dia queria ter
tempo pra visitar o local onde cresci então não adiantava andar
mais hoje. A moto foi pra garagem, e eu entrei no quarto. Logo após
o recepcionista foi embora e não voltou mais. Acho que é por isso
que ele deixou todas as chaves do hotel comigo. Fiquei realmente
tenso, imaginei trocentas coisas acontecendo. Empurrei uma mesinha
pra parte de trás da porta, tomei um banho e tentei relaxar e olhar
o movimento (inexistente). Deu tudo certo e no outro dia meti o pé o
mais rápido possível de Linhares.
Saí
de Linhares ainda escuro e com os cachorros do hotel correndo atrás
da moto. Esse agora é hours concours, pior acomodação da minha
história até o momento. Passei por Aracruz, onde estudei quando
criança e pude ver o quanto realmente a região cresceu. Fui pelo
litoral até Jacaraípe absorvendo tudo o que fose possível. Deveria
ter parado em algum camping por aqui...
Tomei
um café em Jacaraípe, passei na frente da minha antiga casa e
tentei localizar locais onde ia de bicicleta quando moleque. Onde
antes só havia mato hoje são casas e prédios. Apanhei pra
conseguir sair de Serra. Contornei Vitória e segui. Perto de
Guarapari alguns pingos anunciam que a chuva veio me acompanhar.
Já
chegando na divisa decidi que não iria passar pela cidade do Rio de
Janeiro de moto. Não tenho coragem. Então bem próximo da divisa
ES/RJ, parei em um posto e dei a última regulagem possível na
corrente. Subi até Bom Jesus do Itabapoana e ali atravessei pro RJ,
na pior estrada asfaltada em que já andei, tal de RJ 155. Parecia um
imenso sonorizador, a moto cabritava feito louca e a cabeça já
doía. A chuva já acompanhava há algum tempo.
Abasteci
em três rios e o inferno começou. A chuva veio, com violência
agora. Na absurda estrada do ferro, que por mais ridículo que seja é
pedagiada, as água do Paraíba do Sul invadiam a pista em vários
pontos. A chuva forte não deixava eu passar de 70km/h. O frio da
serra fluminense chegava e acabava comigo. Pela primeira vez em toda
a viagem, parei num restaurante de beira de estrada para almoçar e
esquentar um pouco. Eu estava destruído já. Quebrado, moído e com
frio. A moto vinha perfeita. Volta Redonda não chegava nunca! E o
tempo tão ruim, que minha vontade era ficar por lá mesmo.
Quando
começou o trânsito e Volta Redonda se aproximava, a chuva foi
diminuindo. Atravessei a cidade, e quando cheguei na Dutra, me senti
em casa. Cansado, fodido... Mas em casa. Cento e quarenta , cento e
trinta, cento e vinte. Ia contando quilômetro a quilômetro a
distância Por volta das nove da noite eu cheguei no portão de casa,
botei a moto pra dentro, tomei um banho e desmaiei na cama. Até o
momento, o dia mais longo e mais difícil em cima de uma moto:
desesseis horas de pilotagem em baixo de chuva. Até o capacete
estava ensopado por dentro.
Domingo
curti com a patroa.
Segunda
meu irmão veio em casa e botamos os assuntos em dia.
Terça,
fui dar uma volta para fechar as férias com chave de ouro. Quando
chego em casa, pronto para voltar ao trabalho no dia seguinte, recebo
um recado da empresa. Mais dez dias. E em casa eu não vou ficar! Nem
deu tempo de arrumar a moto!
Hidroelétrica das cachoeira gêmeas na chapada das mesas |
Por entro da hidroelétrica desativada. Cheiro insuportável. |
Uma das irmãs |
A outra irmã |
Primeiros viajantes que encontrei, possoal do Caburés do cerrado do Piauí. |
Rumo Recife/Pe |
Já descendo voltando para casa. |
Km da moto na Bahia |
Sul da Bahia |
Estado da coitada depois de tanto abuso |
Km final nessa parte |
Logo vem a ultima parte!
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