O
Jalapão
A
tempestade monstruosa, que chegou com ventania de destelhar casas,
trovões que tremiam as paredes, só latiu. Uma garoa fina caiu a
noite toda. Se eu acreditasse, diria ser um sinal.
Saí
do hotel e passei em uma borracharia, mas ai me informaram que devido
a uma ponte quebrada, não era possível entrar no Jalapão pela
estrada que eu queria e que eu deveria ir mais alguns quilômetros no
asfalto antes de subir sentido Ponte Alta.
Existe
outro fato sobre o Tocantins que me marcou bastante. Não existem
placas de transito lá... nem limite de velocidade, nem proibido
ultrapassar, nem indicações de cidade... nada! Eu vinha viajando
“offline”, evitando uso de GPS e celular. E isso me custou uns
bons quilômetros pois quando percebi já havia passado a entrada há
tempos.
Parei
em uma charmosinha cidade, Chapada da Natividade, onde consegui
trocar os pneus e iniciar, finalmente, nas estradas de terra. E o
borracheiro era natural de onde moro em São Paulo! Mundo pequeno
esse.
Bastaram
alguns quilometros na terra para me convencer de que foi uma
excelente ideia ter levado os pneus de trilha. A estrada era lisa e
larga, dá uma falsa sensação de segurança, e quando a mão tá no
fundo, aparece alguma surpresa, que sem aderencia na frente ou tração
na traseira, seriam vários tombos.
Passei
pela cidade de Pindorama e, logo na saída avisto uma das coisas mais
fantásticas que já vi a olho nú.
Um
vulto no barranco, indo em direção a estrada. “Cachorro burro”,
pensei. “Vou acabar te atropelando”. Fui freando, freando e
quando estava quase parado, consegui ver com mais detalhes, os pelos
dourados com manchas pretas. Era pequeno. Um filhote. De Onça!
Lindo! Cheguei a tentar sacar a câmera, mas o subconsciente me
lembrou que a mãe deveria estar por perto e eu desisti e fui logo
embora dali. Durante todo o passeio no jalapão, era constante o
avistamento de sinais de onças na área. Foi isso, inclusive, que me
fez não acampar selvagem lá.
Alguns
quilômetros à frente, à direita, estava a estrada que eu deveria
ter vindo de Dianápolis. Entrei e rodei alguns quilômetros, sem ver
nada muito interessante, e voltei.
Em
Ponte Alta cheguei cedo, pouco depois do meio dia, fui comer pela
primeira vez “comida de verdade” num restaurante e já dei
entrada na pousada, confortável e com uma staff muito gente boa, Pousada Beira Rio, breço de brima R$50.
A
staff me animou, explicando as atrações da estrada que perdi e me
convenceu a voltar lá pra ver nesse mesmo dia. Com a moto
descarregada, me sentia “O” piloto de rali. Mas nem deu tempo de
chegar na terra... do asfalto, tive outra imagem que ficou na minha
mente. Ali é tudo muito plano, e a visibilidade é enorme. A gente
se sente pequeno. Se sente insignificante perto do monstro de
tempestade que engolia o deserto, a estrada e o solitário carro lá
na frente. As primeiras gotas me atingiram. Foi o tempo de virar a
moto e voltar, até a cidade, com a tempestade me perseguindo e me
alcançando assim que entrei no quarto.
Botei
a leitura em dia (Paratii – entre dois polos, do Amyr Klink).
Descansei. Amanhã vou brincar na terra.
Bagagem
no quarto, pneus cravudos, almoço no alforge e ferramentas no outro.
Hoje o dia vai ser bom! Voltei para conhecer a estrada que deixei de
passar ontem.
Resolvi
parar primeiro na famosa pedra furada, uma das primeiras atrações e
das mais famosas do Jalapão. Sai da estrada principal, de terra
batida, e entrei no areião que leva a pedra. A visão é linda,
guardada as devidas proporções, parece uma Champs Elisées
selvagem, uma reta de seis quilômetros e o arco no fundo.
Por
algum motivo que ainda não consegui entender, algum lapso de razão,
achei que seria mais fácil se eu fosse por uma outra estradinha à
esquerda da principal. Fui seguindo, num areial enorme e fofo, onde a
moto em qualquer reduzida de velocidade entrava na areia até o eixo.
Haja braço, embreagem e pneu pra tirar dali a cada tantos metros. Me
entreti tanto que quando vi já havia rodado vários quilômetros e
só aí percebi que teria que voltar tudo pois não sairia no mesmo
lugar.
Algum
sofrimento depois retorno a principal, lá no começo. A areia da
principal é bem mais batida. Chego rapidamente ao arco, sem inventar
moda dessa vez. Era eu e as araras que vivem nas suas paredes. O
barulho chega a ser ensurdecedor.
Ando
pela área, tiro algumas fotos, e quando volto, perto da moto, gotas
de sangue no chão e patas de onça. Não sei (e não quero saber) se
já estavam lá ou se apareceram depois, mas meti o pé dali rapido!
De volta na principal, várias pegadas de onça nas laterais.
Botei
Matanza no fone de ouvido e acelerei, mais cem quilômetros, até a
cachoeira da Fumaça, bem ao lado da tal ponte quebrada que disseram
que eu não passaria. Tudo bem, dava pra passar, mas assim foi mais
seguro. Deixei a moto, atravessei a ponte e segui pra parte baixa da
cachoeira, até encontrar com Javalis no meio da trilha. Como sei que
são territoriais e perigosos, voltei e fui para a parte alta, num
mirante.
Cachoeira
linda, exuberante. Uma das mais belas que já vi. Um ar selvagem
envolve ela, parece intocada há muito tempo. Admirei a queda por
algum tempo, voltei até a moto e perto dela um lugar propício a
banho nas águas quentes e transparentes que cairiam alguns metros
pra depois.
Na
hora do almoço, comecei o retorno. Parei no rio Soninho, onde havia
um lugar já pronto e propício para fazer o primeiro almoço no mato
da viagem. Fervi água numa fogueirinha para fazer o CupNoodles e
fiquei lá curtindo por um bom tempo a paz de se estar no deserto.
Fiquei imaginando montar a barraca ali. Na minha mente vinha tudo que
vivi nesses ultimos dias. Tinha muita coisa pra descer ainda.
Segui
meu rumo, retornando para a cidade. Cheguei cedo e resolvi adiantar a
atração mais próxima para o dia seguinte render mais. Então segui
até o sensacional Canyon/Cachoeira do Sussuapara, um dos lugares
mais belos, uma das melhores sensações que eu já tive, é muito
difícil descrever, uma paz enorme que reina ali, uma pureza no ar.
Sentei em uma pedra e fiquei ali meditando e absorvendo o ambiente.
Meus olhos merejavam. É a emoção de realizar um sonho, eu acho.
Quando
vi estava começando a escurecer já, e era hora de voltar. Por um
descuido uma das minha cotoveleiras se perdeu na volta, tentei achar,
mas acho que ela resolveu ficar por lá mesmo. Jantei comida de
verdade na pousada, e amanhã sigo para Mateiros.
Até
o despertador foi natural – o papagaio da pousada. Seriam duzentos
e poucos quilômetros até Mateiros, com uma paradinha na Cachoeira
da Velha no meio do caminho.
Mas
o dia começou complicado. Eu tinha certeza de que tinha uns R$70 no
bolso, então resolvi sacar mais um pouco pra me garantir em
Mateiros. Só que só existe um caixa do Bradesco em Ponte Alta, e,
perceba a data, era quinto dia útil e não tinha nenhuma nota nele.
Bom, pensei, R$70 paga pelo menos uma diária de pousada ou acampo no
meio do mato mesmo e uso o dinheiro pra garantir a gasolina.
Saí
de Ponte Alta, levando dois litros extras de gasolina numa garrafa
pet, e segui a estrada, até a entrada do Canyon Sussuapara procurava
pela cotoveleira fugitiva do dia anterior, mas nem sinal. Acelerei.
Havia chovido bem durante a noite e o solo estava compactado. Céu
nublado e temperatura no ponto, um dia perfeito pra pilotagem. Quando
mais adentrava o deserto, maior a sensação de paz. A moto como
sempre impecável e a estrada permitindo um ritmo excelente.
Os
primeiros areiões assutaram mas passei os mesmos sem problemas. Já
tinha pego o jeito.
Peguei
a entrada pra cachoeira da velha, e ao chegar à entrada da fazenda
onde ela fica, o primeiro susto: O caseiro me pediu uma ajuda
financeira, “voluntária”. Abri a carteira. Nada.
Roda
os bolsos, bolsa, bagagem. Nada.
A
cabeça foi a milhão. O caseiro me deixou entrar e fui ver a
cachoeira. Não consegui curtir... não sei se a cachoeira não era
como eu imaginava, ou se era a luz, ou se era eu mesmo preocupado,
mas não consegui curtir. Tirei algumas fotos e voltei.
De
volta à sede da fazenda, vejo um Uno (!) e um cara perto. Mais um
pra lista de nomes estranhos: Gunar, dono de um hostel em Alto
Paraíso, onde eu ainda pretendia voltar nessa viagem. Ele estava
faznedo o jalapão no sentido contrário ao meu. Conversando ele me
tranquilizou, havia como sacar dinheiro em Mateiros! E havia
gasolina! Até o céu abriu e ficou azul depois dessa. Ele me
perguntou como era a estrada pra Ponte Alta. “Tem alguns areioes”
Eu disse, “Não deve ser fácil de uno”.
Rá!
Se soubesse como era o trecho até mateiros, tinha ficado quieto.
Volto
à Bifurcação para seguir em direção a Mateiros, e pego o
primeiro areial de verdade. Alguns quilômetros. Mas saio ileso. No
próximo, só deu tempo de ver algo voando por cima do capacete. Era
o farol de milha, o suporte desistiu da viagem. Guardei no alforge e
segui.
Eu
agradecia aos pneus a cada areiao. Não fosse eles, muitas
negociações teriam se concretizado em compras de terreno no
deserto.
Chego
ao Rio Novo e à entrada oficial ao Parna Jalapão. Aqui aparece um
novo integrante na brincadeira: lama. Eu estava com sangue nos olhos,
me sentia o André Azevedo.
Pode
vir jalapão, é só isso? Tacalepau!
Cheguei
na entrada das dunas, já na parte da tarde. Contribuição
“voluntária”, que não fiz novamente por não ter um puto no
bolso, o guarda abre a corrente e tã-dã, atolado até o eixo. Nem
se mexia a moto.
Olha,
eu nunca paguei tanto pau em uma estrada na minha vida. Já tive
situações piores por outros fatores, mas em termos de estrada, essa
foi a pior. Pra aprender a ser mais humilde, ela me derrubou umas
tantas vezes, e tentou outras várias. Parecia que até a moto estava
contra mim.
Qualquer
velocidade abaixo de 30km/h, a moto atolava. Acima dessa velocidade,
qualquer encostada no ombro do facão onde rodava fazia a moto virar
de uma vez e se lançar atropelando o que estivesse no caminho –
arvores, arbustos, bichos, sem preconceito. Foram dois tombos na ida
e dois na volta, todos devagar e sem consequências, e alguns
arbustos arrancados pela raiz.
Fui
curtir as dunas e quando voltei até a moto havia desmaiado de
cansaço, deitada debaixo de uma árvore curtindo a sombra.
E
as dunas, ah, as dunas! Que lugar mágico! Pena uma equipe de
farofeiros atrapalhando por lá. Povo de agência... não respeita o
ambiente, mais preocupado com a janta do que o lugar FODA em que
estavam.
Só
de pensar na volta tive arrepios, mas consegui chegar. Tomei o rumo
de Mateiros. Poucos quilometros à frente tinha a entrada da trilha
para a Serra do Espírito Santo. Olhei, um arrepio correu a espinha,
e o subconciente dizia baixinho “Deixa pra próxima”.
Pouco
depois chega Mateiros, que é a cidade mais feia do Jalapão, e a
mais cara. Paguei feliz R$5,20 no litro de gasolina, só de imaginar
o caminhão tanque passando onde passei, e que eu não ficaria sem
combustível. Consegui uma pousada simples e aconchegante, a mais
barata de Mateiros (R$60), mas não me lembro o nome. Do posto de
gasolina da pra ver ela do outro lado da praça. Consegui sacar
dinheiro no supermercado, um esquema parecido com máquina de cartão
de crédito. Até fui dar uma olhada em artesanato, mas tudo muito
caro, mais caro que fora do jalapão, e atendimento muito ruim.
Terminei de ler o livro do Amyr... E amanhã pretendo seguir pra São
Felix.
Pela
segunda vez na viagem, acordei antes do despertador, e o mais rápido
possível estava na moto. O tempo, nublado e firme, prometia não
judiar de quem vos escreve.
Depois
do sufoco no areial ontem, decidi evitar riscos desnecessários e
visitar os pontos principais do deserto. Sempre temos que deixar um
motivo pra voltar, certo?
Logo
na saída de Mateiros tem uma estradinha que vai pra vários
fervedouros, de seis a dez quilômetros de areial pra chegar (são
três se me lembro bem). Passei direto. Mais pra frente tinha a
entrada pro frevedouro da Sissa.
Era
cedo ainda... ninguém por perto. Fui entrando e seguindo o caminho
até chegar no fervedouro. Que coisa diferente! É bonito, parece uma
piscina, água perfeita... e areia entrando na cueca. Curti bem lá,
mas tinha uma sensação estranha, não sei, não conseguia ficar em
paz. Voltei e ainda ninguém nem na entrada.
Na
moto novamente, segui pra famosa, linda e maravilhosa cachoeira do
Formiga. Acreditem quando digo que não existem palavras pra
descrever essa cachoeira. Não tem nada a ver com a realidade. Foi o
melhor banho de cachoeira da minha vida, eu garanto! Ali fiquei
horas. Se não fosse tão cedo, acamparia por ali mesmo. Mas a
cachoeira me deu uma injeção de energia e resolvi tocar.
Parei
depois em São Felix, mais bonito e organizado que Mateiros. A
estrada entre as duas cidades é muito, muito ruim! Sofrência! Na
verdade, me pareceu haver uma certa rixa entre as duas cidades (e na
minha opnião, Mateiros sai perdendo). Era hora do almoço. Passei no
fervedouro do Alecrim, lindo e deserto. Muito interessante, mas não
queria encher a bunda de areia de novo. A cachoeira do formiga me
satisfez.
Voltei
a moto, e pelo mais puro fogo no rabo, resolvi tocar. No final da
tarde cheguei a Novo Acordo, por uma estrada deliciosa onde era
possível andar a 100km/h tranquilamente na terra. Foram cento e
quarenta quilômetros. Parei numa Padaria, verde de fome, fiz amizade
com um caubói que me pagou um lanche, e, novamente, por puro fogo no
rabo, resolvi tocar para Palmas.
Da
saída de Novo Acordo, até Palmas, tudo em baixo de chuva
torrencial. Eu estava cansado, muito cansado. Rodei e encontrei uma
pousada estilo americano, Milani. Um lixo de pousada, a pior da
viagem, extremamente fedida. Mas o cansaço não me deixava procurar
outra. Apaguei, e sonhei com os Andes. Será?
O começo do jalapão pra mim, primeiro trecho sem asfalto, perto de Ponte Alta |
O rio que corta o Jalapão. Lá na entrada do parque a gente chega nele novamente. |
Morro da cruz |
Brincando na estrada antes da chuva chegar |
Trilha do nada ao lugar nenhum |
Pedra furada, moradia das araras |
Plano, tudo plano. |
Seguindo as pistas, patinhas de onça no caminho. |
Seguindo as pegadas da onça |
Caminho para o rio soninho e cachoeira Véu de noiva |
Almoço no deserto |
A champs elyseés selvagem |
Brincando na areia |
Cava cava cava! Unstopabble! |
Sussuapara, uma outra dimensão! |
Um dos muitos areões |
Cachoeira da velha |
Praia do rio soninho |
E lá se foi o farol de milha |
Estrada das dunas |
Dorminhoca |
Dorminhoca Pt2 |
A água da cachoeira do formiga na estrada |
Perto do Fervedouro do alecrim |
Fervedouro do Alecrim |
Rodovia Jalapão - é como estar em um rally |
Bom, essa era a atração pricipal da viagem, até então. Agora é subir até a chapada das mesas e decidir se volto ou se vou ao leste.
Logo virá a parte 4!
Até mais!
Cara Muito bacana teve a manhã,kkkkkk ri pacas espero que a onça não me peue estou indo de camping para economizar.
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